Livros de Crônicas
O troco do amante
– “Maior que o infinito”, pois, pois!…
O amorzão da Rosália pelo Zé Maria, igual ou maiorzão que aquele amor da cantiga do Roberto Carlos, foi, verdadeiramente, nas aparências, maior que o infinito.
Tanto foi assim que ela não aguentava olhar para o amante e perceber que ele estava a repousar olho aceso em outra mulher. Isso acontecesse, era tiro e queda: Rosália batia em cima do gajo que nem uma jararaca.
Então, assim (como dizem a cariocagem e os paulistas), esticar olhado para qualquer moça do bairro era um erro imperdoável do Zé Maria. Ele não deveria fazê-lo, nem por nada deste mundo. Mas de jeito nenhum, mesmo! A vista do tal teria sempre era que ficar no ponto baixo, rumo das pernas. Ou que ele torcesse a cara de banda.
O Zé Maria se esforçava para cumprir as normas baixadas pela amásia, mas a dona era incorrigível nos ciúmes. E assim foi. Segundo a própria Rosália, em depoimentos, só por amor, desde o Natal até aqui, ela atentou duas vezes contra a vida do amado. E, na segunda vez, não deu outra: a polícia descobriu a maranha e enquadrou a ré por “tentativa de homicídio”.
Mas tudo por amor, segundo os botões da acusada.
No primeiro atentado, Zé Maria teve uma zonzeira, passou mal e foi parar num posto da UPA. Levou um clister, ou lavagem anal, sei lá, e se deu bem. Voltou para casa, e mais amores. Agora, da segunda vez, a porca torceu o rabo.
Foi um doido pega para capar na vidinha safada do moço. Embrenhou-se durante quinze dias na UTI do maior hospital municipal, com testes de laboratório e tudo comprovado: o Zé Maria ingerira venero de matar ratos. Aquele tal famoso e perverso “chumbinho”.
Aí sobrou para a Rosália. Interrogada, foi franca, pelo menos isso. E se mostrou aliviada, ao dizer que fizera o malfeito por amor ao seu mulherengo Zé Maria.
O depoimento contrariava o que rezam as airosas raparigas da vizinhança. Não, aquele bobo era muito bem-comportado. Ele nem olhava de frente para o mulherio!
Porém o concubino (acho esse termo um horror, burilado de preconceitos) deu provas de amor, sim. Deu também o troco. Recuperado, até hoje vai diariamente levar almoço, merenda e jantar para a ciumenta gaja na Divisão de Homicídios.
E, outro dia, bem deitado em sua rede da consciência, confidenciou para o delegado:
— Doutor, eu não tomei ódio, não. Porque eu amo ela. A Rosália não acredita. Mas eu só amo ela.
Livro: "Lagarta de fogo & outras crônicas" - pág. 57
Homem inteiramente nu
– Isto foi em plena Avenida Paulista.
O escritor Fernando Sabino, com pena reconhecidamente de ouro, já nos fez seu ofertório: escreveu “O homem nu”. E a literatura brasileira, a mil cavalos-vapor, agradece ao mineiro cidadão do mundo, já desencarnado, pelo brilhantismo dos contos e crônicas do livrinho.
Contudo, o homem nu (sem aspas, aqui) que despertou a atenção do paulistano, ali antes do Natal, foi um homem que efetivamente se despiu. No olho do tempo, ele se desnudou todo. Ficou em pelos, do jeitão que nasceu. Nuinho, o cidadão, e em plena Avenida Paulista, no coração da estupidamente grande, populosa e bela São Paulo.
O desconhecido vestia apenas um par de óculos, para que não se diga que era um nu devasso, contaminado pelas vicissitudes mundanas e terrenas. Também, pela postura e já pelo palco em que se apresentou, estava longe de alcançar a performance de um nu artístico. Simplesmente um nu, envolto no lençol de olhares curiosos e perplexos, na artéria mais central da Sampa do cantor baiano, aquele de “Alegria, alegria”.
Tranquilo, o homem nu. Pelas aparências, ele denotava uma calma filosófica, se não chegasse à fleuma esquizofrênica. Ah, também que se diga: o homem desnudo contemplava o azul do céu, calmo, reverente e pudicamente estoico. Era feito um poeta deslumbrado que acabasse de descobrir os encantos — ao mesmo tempo — luxuriantes e pudicos da sua bem-amada, a musa de suas fantasias idílicas.
O anacoreta nu nem ligava para as exigências da moralidade pública, impostas pelo convencionalismo social. E, estando impassível, não parecia ser aluado nem portador de tara exibicionista. Era apenas isto, só: um homem inteiramente nu. Seus óculos e sua calvície davam-lhe o tom de sujeito sério, talvez mais gasto que envelhecido. E não exibia sinais de abilolado. A medir-se pela pose teatral, o gajo não era tantã, de modo algum. Até que ele portava aspecto de pessoa sensata, razoável. No entanto, nu, lá na Avenida Paulista, sem sequer importunar-se com os olhos atônitos da multidão em derredor.
Um homem plantado na jugular da gigantesca Sampa, nu inteiramente, o que não tem sido usual, senão São Paulo viraria um só calabouço. Pelo bem-bom da moralidade, pela boa-fé do paulistano, diga-se de viagem. Mas o homem, coitado lá dele, desafiava a moral pública, a pudicícia alheia, os ditos bons costumes e os direitos da cidadania. Mesmo assim, o estranho não alimentava modos de malfazejo, intencionalmente decidido a macular as leis da sociedade. Não, de modo algum. Apenas um pacato camarada que se despira, uai!
Às perguntas da repórter, que se decidiu a enfrentar o nu, o homem desnudo só lhe deu o silêncio por resposta. Não queria aporrinhar-se. Talvez porque devia ver coisas no ar, quem sabe a visão de um querubim. Quando a polícia veio e o agarrou, em pelo e osso, o nu é que fez sua única pergunta incisiva, já virado para as câmeras da tevê:
— Quem é que manda no mundo?